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Quase toda a rede do Uruguai funciona com energia verde. Aqui está o que você deve saber

Tempo de leitura: 5 minutos

Quase toda a rede do Uruguai funciona com energia verde. Aqui está o que você deve saber

Tem uma população de pouco menos de 3,5 milhões de habitantes, produz cerca de 550 mil toneladas de carne bovina por ano e ostenta uma gloriosa reputação no futebol, com duas Copas do Mundo em sua história e um presente repleto de estrelas de classe mundial. O Uruguai, país do escritor Mario Benedetti e do jogador de futebol Luis Suárez, alcançou o que muitos países prometeram durante décadas: 98% da sua rede funciona com energia verde.

Luis Prats, 62 anos, é jornalista uruguaio e colaborador do jornal El País, de Montevidéu. Ele lembra que na infância os apagões eram comuns no Uruguai porque havia grandes problemas de geração de energia.

“Naquela época, há mais de 50 anos, a eletricidade vinha de duas pequenas barragens e da geração numa central térmica”, explicou Prats em espanhol por telefone. “Se houve seca na bacia do rio Negro, onde ficam essas barragens, já houve cortes e às vezes restrições no uso de energia elétrica.”

Há apenas 17 anos, o Uruguai utilizava combustíveis fósseis para um terço da sua geração de energia, segundo o World Resources Institute.

Hoje, apenas 2% da eletricidade consumida no Uruguai é gerada a partir de fontes fósseis. As centrais térmicas do país raramente necessitam de ser activadas, excepto quando os recursos naturais são insuficientes.

Metade da eletricidade do Uruguai é gerada nas barragens do país e 10% por cento provém de resíduos agrícolas e industriais e do sol. Mas o vento, com 38%, é o principal protagonista da revolução na rede elétrica. Mas como o país conseguiu isso? Quem foram os arquitetos desta transição energética?

Revolução energética

Em 2008, o Uruguai enfrentou um problema que muitos países em desenvolvimento enfrentam. A economia estava a crescer, mas não tinha energia eléctrica suficiente para alimentar todo esse crescimento. O racionamento de energia teve de ser implementado e as contas de eletricidade continuaram a subir.

“Foi difícil para nós lidar com a situação”, disse Ramón Méndez Galain, professor da Universidade da República em Montevidéu, Uruguai, em entrevista à NPR. Ele é um dos arquitetos da revolução energética naquele país. “Foi difícil conseguir eletricidade. Por um tempo, começamos a ter cortes de energia, mas a crise também representa uma oportunidade.”

Em 2008, o presidente Tabaré Vázquez nomeou Méndez Galain como diretor nacional de energia. Embora os apagões representassem uma ameaça imediata para a economia, a dependência contínua do país do petróleo minou a sua autonomia. Uma questão principal orientou o trabalho de Méndez Galain: Que estratégias poderiam levar o país à independência energética a longo prazo? O físico desenvolveu um plano detalhado para levar o Uruguai a uma dependência quase exclusiva de energias renováveis.

O plano de Méndez Galain baseava-se em dois factos simples sobre o seu país. Primeiro, embora não houvesse abastecimento interno de combustíveis fósseis, como carvão ou petróleo, havia uma grande quantidade de vento. Em segundo lugar, esse vento soprava sobre um país que era em grande parte constituído por terras agrícolas desabitadas. Sua visão para o futuro energético do Uruguai era cobrir essas terras vazias com centenas de turbinas eólicas.

Pablo Capurro, agrônomo e engenheiro pecuário, compartilhou com a Deutsche Welle sua preocupação na época sobre o possível impacto das turbinas eólicas na vida de sua fazenda. Capurro e outros agricultores da região procuraram aconselhamento de uma equipe de engenheiros e viajaram ao Brasil para visitar parques eólicos naquele país. Após a viagem, eles se convenceram de que a implantação dos aerogeradores não afetaria o sistema de produção.

As vacas de Capurro parecem não se sentir afetadas pela presença dos moinhos de vento: “Sinto-me muito satisfeito por ter introduzido um parque eólico numa exploração pecuária”.

Em 2010, o Uruguai chegou a um acordo multipartidário e adotou a transição energética para fontes indígenas e renováveis ​​como política de Estado, garantindo sua execução e continuidade, explicou Walter Verri, subsecretário de indústria, energia e mineração do Uruguai, por telefone em espanhol: “Isso a política incluía uma perspectiva de longo prazo e incorporava também as dimensões social, ética e cultural, além da clássica análise técnico-econômica da questão energética.”

A empresa estatal de energia, UTE, paga anualmente aluguel aos proprietários dos terrenos onde funcionam os parques eólicos.

Dom Quixote, Ivy e os moinhos de vento

Na visão do engenhoso cavalheiro Dom Quixote de La Mancha, os moinhos de vento pareciam gigantes desafiadores, refletindo a sua imaginação sem limites e a sua perspectiva idealista do mundo. Esta interpretação mítica dos moinhos de vento ressoa com a percepção contemporânea das torres eólicas no Uruguai, onde são vistas como símbolos de uma fonte de energia limpa e renovável.

Hoje, Mendez Galain dirige a organização não governamental Ivy, que significa “terra sem mal” em guarani. O guarani é a língua nativa dos habitantes daquela região e é uma das duas línguas oficiais do Paraguai.

Assim como Dom Quixote encarou os moinhos de vento como um desafio que teve que superar para cumprir seu dever de cavaleiro andante, a instalação e manutenção de parques eólicos no Uruguai também envolveu enfrentar obstáculos significativos. Dos desafios técnicos às barreiras financeiras e regulamentares, a transição para fontes de energia limpas exigiu um esforço concertado para superar estas dificuldades e avançar em direção a um futuro mais sustentável.

Como pagar por todas essas turbinas?

Méndez Galain, vencedor do Prêmio Carnot 2023, que reconhece contribuições diferenciadas para a política energética, concebeu uma variação de abordagem utilizada por algumas empresas elétricas no Brasil. Essas empresas operavam por meio de parcerias público-privadas, onde as empresas eram responsáveis ​​pela geração de energia, enquanto as entidades privadas administravam a distribuição e o atendimento ao cliente. A inovação de Méndez Galain consistiu em reverter essa dinâmica: as empresas privadas seriam responsáveis ​​pela instalação e manutenção das turbinas eólicas que abasteceriam a rede do Uruguai, enquanto a empresa pública continuaria a distribuir a energia aos consumidores.

Esta abordagem tinha a vantagem inerente de transferir o dispendioso desembolso inicial para a construção de turbinas eólicas para empresas privadas. A estatal concordou em adquirir toda a energia produzida pelas referidas turbinas a uma taxa pré-estabelecida durante 20 anos.

“Os investidores precisam de garantias de que o seu investimento será reembolsado”, explicou Méndez Galain durante a entrevista à NPR, “e para isso precisam de um horizonte temporal específico”.

Houve vontade política para esta abordagem: todas as partes no Uruguai concordaram com a transição.

Em 2009, o Uruguai iniciou leilões nos quais empresas eólicas de todo o mundo competiram para oferecer a energia renovável mais barata ao país. Em 2011, um leilão específico teve como objetivo garantir 150 megawatts adicionais de energia eólica, o que representaria aproximadamente 5% da capacidade total de geração de energia do país. Após receber ofertas de mais de 20 empresas internacionais, o professor e sua equipe decidiram acelerar drasticamente a transição energética do país.

No final das contas, aceitaram muito mais ofertas do que o inicialmente planejado, assinando contratos que ampliaram a capacidade do Uruguai de gerar eletricidade não em 5%, mas em mais de 40%. A rede energética do Uruguai passou a ser alimentada quase exclusivamente por fontes renováveis ​​nacionais e os preços ao consumidor, ajustados pela inflação, caíram.

“Os preços das contas de eletricidade caíram substancialmente”, disse Alda Novell, moradora de Montevidéu, por telefone. Hoje, o Uruguai possui mais de 700 aerogeradores distribuídos por todo o seu território.

“À primeira vista, a mudança é vista em muitas áreas do país: você desce a estrada e vê os modernos moinhos de vento nas áreas rurais”, disse Prats. “A partir de 2010, com a variedade de fontes de energia, e também renováveis, os apagões tornaram-se muito raros. Foi um alívio para os cofres do Estado não ter que gastar com combustíveis fósseis para geração de energia.”

Para Walter Verri, subsecretário de Indústria, Energia e Minas, o desenvolvimento das energias renováveis ​​no Uruguai foi possível graças à colaboração de diversos atores, incluindo todo o setor político e empresas públicas e privadas.

Esta transformação energética criou novas carreiras, oportunidades de emprego e caminhos de formação no Uruguai, acrescentou Verri.

Países de todo o mundo passaram a última década a anunciar objectivos ambiciosos para reduzir as emissões que causam as alterações climáticas. Poucos estão no caminho certo para atingir esse objetivo. O Uruguai é um bom exemplo de que a transição verde ainda é possível.

Este artigo foi traduzido por Climate Cardinals.

Este artigo apareceu pela primeira vez em Conexões climáticas de Yale e é republicado aqui sob uma licença Creative Commons.

—John Carolina Ponce